segunda-feira, 22 de junho de 2015

Hoje abri espaços vazios dentro de mim. O vazio é tão bom, ele permite que boas novas cheguem. Empilhamos muita quinquilharia dentro de nós. Guardamos sentimentos que não precisavam ser tão bem seguros. Aí, quando algo bom quer chegar, tem que abrir tanto espaço, que ao invés de fazer bem, só pesa o peito e vai congestionando tudo, até a garganta. Então tudo vai virando medo, angústia, bloqueio. É aí que o que deveria nos fazer bem, passa a nos causar sofrimento. Pronto, está criada a fôrma. Quando você tem fôrma e uma receita de bolo, pra quê vai se aventurar a preparar tudo sem elas? A partir daí tudo que se aproxima, vira mais um ingrediente da receita dentro da fôrma. Não adianta parar pra pensar, ouvir coisas seja lá de quem for, porque se tudo que você ouve e pensa, você transforma em ingrediente dentro da sua fôrma de sempre, tudo no fim, vai se transformar no mesmo bolo, na mesma coisa, no mesmo pensamento, na mesma atitude, na mesma resposta.

Como não fazer isso? Estando presente no agora, ouvindo, vendo e vivendo tudo no momento em que acontece, sem se transportar e buscar referência na receita que está dentro de você. Fazendo isso, você vai rasgar a receita, quebrar a fôrma e não vai precisar de outras pra colocar no lugar. Porque se você está presente no agora, você vive e responde àquilo que acabou de acontecer, sem o peso do que foi, sem a fôrma e a receita.

Sou atriz e professora de teatro e sempre falo para os meus alunos, que no momento da cena, eles não devem pensar como e o quê fazer. Seus personagens devem estar em cena e sentir, viver aquilo naquele momento. Dessa forma, por mais que o texto esteja decorado, e aquela cena ensaiada por meses a fio, se o personagem está ali, agindo e reagindo, ele vai sentir o que precisar sentir na cena, sem antecipações. É muito comum ver alunos e até atores já experientes entrarem em cena pensando em como vão fazer cada coisa, falando suas falas, fazendo suas marcações, já pensando na seguinte, na próxima emoção que vão ter que mostrar. Sim, mostrar, porque quando você não sente, tem que fabricar algo pra colocar no lugar. Por isso, pra muitos, o espetáculo deixa de ser um prazer e passa a ser um tormento e quem está nele, quer que acabe logo. Então, temos muitos atores, cujo único prazer na profissão, é a fama. Enquanto ela deveria ser apenas uma consequência, que nem sempre acontece. Mas passa a ser o objetivo principal. Então temos seres sedentos por estrelato ao invés de atores. E quando você permite que o seu personagem esteja ali, naquele instante que acontece, ele só vai precisar responder ao que está vivenciando.

Um exemplo bem simples disso é um espetáculo infantil que estou ensaiando com um aluno. Meu personagem Estela leva uma bolada na cabeça. E ela sempre se assusta de verdade, nunca está esperando a bolada. Uma vez me perguntaram: você sabe o texto decorado, conhece o roteiro e tudo que vai acontecer, como é possível se assustar toda vez com a mesma coisa? É porque a Estela está ali, naquele momento sem saber que vai levar uma bolada, ela está vivendo e reagindo ao agora, ao que está acontecendo naquele instante, e naquele momento ela não sabe qual será o próximo acontecimento.

Isso tudo não deve ficar apenas na observação quanto à cena. Quantas vezes não estamos nos lugares que estamos? Passamos por momentos bons e ruins, sem vivê-los, enquadrando-os na receita e jogando dentro da fôrma, aí todo bolo tem o mesmo gosto, tudo que fazemos ou ouvimos de alguém, passa a ser simplesmente a repetição da receita, é enquadrado lá antes de sentir, e depois que está enquadrado, já não pode mais ser vivido, apenas reproduzido. Então vamos nos fechando, parando de compreender tantas coisas, cultivando tristezas e apegos velhos. 

Se algo novo te faz mal, não pelo que aconteceu, mas pela recordação que você tem de momentos parecidos, é porque você não está se permitindo sentir o novo sem a influência do velho, você não está ali, presente no agora, está simplesmente repetindo mágoas antigas. Não que o novo não possa fazer mal, claro que pode, e isso não é um problema. Mas é que se você vivê-lo, sem a fôrma, você vai conseguir perceber, encarar, viver aquilo e permitir que vá, sem acrescentar na receita, fingindo pra você mesmo que jogou fora, enquanto esconde em algum cantinho dentro de você. O novo vai estar limpo do que já foi. Quando você junta ele no bolo, além de não conseguir perceber direito, ele ganha mais peso e tudo que já estava lá, vai sendo reafirmado, o bolo vai crescendo, espremendo o peito, dando nó na garganta, dor nas costas e por aí vai. Ou você acha que as doenças vêm de onde? O seu corpo está sempre no agora, mesmo que você não perceba. Ele sabe de tudo que acontece com você e reage a isso. Ele te dá tantos sinais, e quando é ignorado, porque você não está ali, vai achando formas de gritar mais alto. E os pequenos alertas vão virando doenças bobinhas, medianas, graves.

Nem sempre eu consigo estar no agora, mas é uma questão de determinação e treino. E com os espaços vazios que ganhei hoje, decidi que não vou permitir mais coisas que não me fazem bem. Uma boa forma de fazer isso é abandonar os hábitos que fazem mal, tão cultivados, perceber cada um deles, de coisas simples, que aparentemente não tem importância, aos mais enraizados e difíceis de deixar. Não deve haver exceções. Claro que nem tudo vai ser percebido imediatamente, mas é uma busca constante, determinada e com o objetivo de não permitir o costume só hoje, só uma vez. Não podemos nos mimar assim, esse também é um hábito que faz mal.

Outro exemplo é quando estou acompanhando os ensaios de alguma turma, ou temporada de espetáculo. Acompanho como professora, preparadora de elenco ou diretora. É muito comum as pessoas estranharem minhas reações. Quando estou assistindo, eu fico tão ali, naquele segundo que está acontecendo, que apesar de já conhecer o espetáculo de trás pra frente, eu me surpreendo, emociono, fico apreensiva, acho engraçado. É como se cada vez que eu assisto fosse a primeira. Já me perguntaram também como isso é possível, se eu já sei o que vai acontecer e já assisti a mesma coisa tantas vezes. Bom, quando eu estou entregue ali ao momento, eu me permito sentir, reagir e pensar de acordo com o que acaba de acontecer, e não à minha memória daquilo.

Não estou dizendo que não devemos ser experientes, ter conhecimento e usá-lo, mas se não vivemos o que está acontecendo, a experiência não faz diferença. Na verdade, quando só repetimos a receita e o bolo dentro da fôrma, nossa bagagem de conhecimento não é real, passa a ser apenas mais massa de repetição.

Vou abrir mais vazios aqui. No vazio há espaço pra tudo que minhas percepções e vontades pedirem. E quando algo se juntar aqui dentro, não vai ser por falta de espaço e sim porque a vontade pediu. 

Natália Possas
sexta-feira, 19 de junho, 2015
Eu, que antes tinha medo de chão, e agora sempre me aconchego nele; valso sentimentos, respiração, gritos, silêncios, sussurros, toque, suspiros, presença... e cada parte de mim, pede mais um pedacinho de abraço de terra, de chão, enquanto o vento leva o corpo e os movimentos deixam os sentidos transbordarem. É nessa hora que o peito nem lembra que é peito, que o saber e o ser perdem as definições, que os sorrisos e a alma se expandem aqui e longe, e o ar canta livre dentro e fora de mim.

Natália Possas

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Cada pedaço de papel pode ser um amontoado de palavras, tradução de sentimentos, verso, prosa, narrativa, frases soltas do que alguém pensou, pedaços de pensamentos, vazio, nada, uma parte de tudo e o que mais você quiser supor ou nomear. Não importa. Não importa o que foi, o que vai ser e muito menos os nomes e as classificações. Agora só importam as mãos que escrevem essas linhas e se entregam ao instante vazio de todo o resto. Elas se permitem no agora, a cada suspiro de arte, a cada som e milésimo de sentido, a cada vazio e preenchimento, a cada tudo comungado de outros olhares, ou nenhum. 

Mas essas mãos se rendem também a pensamentos inacabados, que se fundem e a fazem escapar de si, do instante, do silêncio, do som e do movimento. Elas são teimosas e ansiosas, e vez ou outra deixam versos inacabados. Se atiram em infinitos rabiscos sem corpo, cheios de voz. Quando isso acontece, elas deixam seus sons descansando e se perdem nos barulhos de gente que inundam o mundo de frases que deixaram de ser. Essas mãos sabem mais do que escrevem. Alguns pensamentos ainda estão por se firmar. 

Elas gostam mesmo é de brilhos nos olhos, abraço grandão que espelha corações, cheiro de dia alegre, arte, chão, sorrisos que saem por aí trazendo mais brilhos nos olhos, flor, sol, cafuné, dedicação, aprendizado, vento, gente, respiração, palco, barulho de água, desenho de nuvem, cheiro de terra, conversa de passarinho, chuva, conversa de corações, pés descalços, gargalhadas.

Tem hora que essas mãos se esquecem que gostam de tudo isso, aí as palavras vem aqui e logo dão um jeito de lembrá-las; e cada vez que isso acontece, um pedaço de papel ganha sentimentos bons e sai por aí pra tocar outras mãos. Se você está lendo isso, é porque acabou de ser tocado por elas. Faça bom proveito e deixe o vento levar mais longe, feito conversa de passarinho. 

Com brilho nos olhos, Natália Possas

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Pedra com desenho de água.
Deixa escorrer, lavar, levar,
deixa ir.

Deixa o vento fazer carinho
e a água fazer massagem.
Deixa os sons puros 
e simples tocarem sinfonias,
harmonias desarmônicas,
soltas no pensamento de quem sentiu.
Sem tons selados, rimados, nomeados.

Deixa escorrer, lavar, levar,
deixa ir

E se ficar o suspiro, que seja de alívio.
E se ganhar sussurro, que seja pro vento soprar,
no ouvido de quem quer lavar,
levar,
escorrer,
deixar ir,
...

Natália Possas

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Cadê? Cadê os desenhos guardados que eu quero escrever? Cadê? Cadê as fugas, frases breves tolas, inóspitas cuspidas pela saudade de mim? Cadê o peito leve e puro que eu tenho  apenas uma lembrança muito distante. Cadê tudo que eu encontro em mim e escondo de novo. Cadê as lágrimas que antes eram fáceis. Cadê os sons e os cheiros.  Cadê as portas abertas dentro de mim. Cadê os pensamentos que eu afogo antes de saber. Cadê eu gritando com muita voz. Cadê o olhar bonito. Cadê o olhar feio. Cadê as sincronias tortas e felizes. Cadê a fome, o grito, o tesão e a vontade. Cadê os gestos e as gargalhadas. Cadê o sorriso largo pela rua. Cadê a coragem. Cadê tudo que eu não soube saber. Cadê as minhas, eu e os meus. Cadê os sons, urros e silêncios bons. Cadê a degustação do que o medo não percebeu. Cadê a espontaneidade escancarada, a doçura que olhava as paisagens de gente. Cadê o senso, não senso, contrassenso. Cadê o piano e o tambor. Cadê a fome pra saciar. Cadê os pés firmes que gostam de voar. Cadê tudo que eu sei pros outros e não uso. Cadê o que não sabem de mim. Não sabem. Cadê a parede de chapisco e o cheiro de flor. Cadê a gangorra. Cadê o que tá aqui e eu não consigo pronunciar. Cadê o fim que começa sempre. Cadê a presença real. Cadê a dissolução dos equívocos  criados dentro e fora. Cadê o basta do cadê. Cadê o cheiro, o gosto e o abraço. Cadê a mão que não sabe desenhar, mas gosta de sentir o vento. Cadê o vento no rosto. Cadê a resposta do corpo.  Cadê o diálogo e a reação. Cadê a merda, a lenha e o tosco. Cadê o palavrão motivado. Cadê o traço cheio de morros. Cadê o ar solto. Cadê a vontade, que sempre tem vindo apressada demais pra ficar. Cadê as rimas desapegadas que pararam de rimar. Cadê o fim da fuga. Cadê o que eu quero e o que eu preciso. Cadê o que eu nem consigo mais saber. Cadê o fim dessa porra desse texto que não para de achar um monte de coisas, mas não grita de verdade. Eu acho formas de fugas de mim até dentro das palavras.  Cadê a competência sendo usada pro que precisa. Cadê o cansaço do que foi feito. Cadê o fim das listas. Cadê a vontade de tudo. Cadê tudo que dá vontade. Cadê o que eu fiz com tudo que foi entendido aos berros. Cadê tudo que eu preciso pra terminar essas linhas?


Natália Possas