Hoje abri espaços vazios dentro
de mim. O vazio é tão bom, ele permite que boas novas cheguem. Empilhamos muita
quinquilharia dentro de nós. Guardamos sentimentos que não precisavam ser tão
bem seguros. Aí, quando algo bom quer chegar, tem que abrir tanto espaço, que
ao invés de fazer bem, só pesa o peito e vai congestionando tudo, até a
garganta. Então tudo vai virando medo, angústia, bloqueio. É aí que o que
deveria nos fazer bem, passa a nos causar sofrimento. Pronto, está criada a fôrma.
Quando você tem fôrma e uma receita de bolo, pra quê vai se aventurar a
preparar tudo sem elas? A partir daí tudo que se aproxima, vira mais um
ingrediente da receita dentro da fôrma. Não adianta parar pra pensar, ouvir
coisas seja lá de quem for, porque se tudo que você ouve e pensa, você
transforma em ingrediente dentro da sua fôrma de sempre, tudo no fim, vai se
transformar no mesmo bolo, na mesma coisa, no mesmo pensamento, na mesma
atitude, na mesma resposta.
Como não fazer isso? Estando
presente no agora, ouvindo, vendo e vivendo tudo no momento em que acontece,
sem se transportar e buscar referência na receita que está dentro de você. Fazendo
isso, você vai rasgar a receita, quebrar a fôrma e não vai precisar de outras
pra colocar no lugar. Porque se você está presente no agora, você vive e
responde àquilo que acabou de acontecer, sem o peso do que foi, sem a fôrma e a
receita.
Sou atriz e professora de teatro
e sempre falo para os meus alunos, que no momento da cena, eles não devem
pensar como e o quê fazer. Seus personagens devem estar em cena e sentir, viver
aquilo naquele momento. Dessa forma, por mais que o texto esteja decorado, e
aquela cena ensaiada por meses a fio, se o personagem está ali, agindo e
reagindo, ele vai sentir o que precisar sentir na cena, sem antecipações. É
muito comum ver alunos e até atores já experientes entrarem em cena pensando em
como vão fazer cada coisa, falando suas falas, fazendo suas marcações, já
pensando na seguinte, na próxima emoção que vão ter que mostrar. Sim, mostrar,
porque quando você não sente, tem que fabricar algo pra colocar no lugar. Por
isso, pra muitos, o espetáculo deixa de ser um prazer e passa a ser um tormento
e quem está nele, quer que acabe logo. Então, temos muitos atores, cujo único
prazer na profissão, é a fama. Enquanto ela deveria ser apenas uma
consequência, que nem sempre acontece. Mas passa a ser o objetivo principal.
Então temos seres sedentos por estrelato ao invés de atores. E quando você
permite que o seu personagem esteja ali, naquele instante que acontece, ele só
vai precisar responder ao que está vivenciando.
Um exemplo bem simples disso é um
espetáculo infantil que estou ensaiando com um aluno. Meu personagem Estela
leva uma bolada na cabeça. E ela sempre se assusta de verdade, nunca está
esperando a bolada. Uma vez me perguntaram: você sabe o texto decorado, conhece
o roteiro e tudo que vai acontecer, como é possível se assustar toda vez com a
mesma coisa? É porque a Estela está ali, naquele momento sem saber que vai
levar uma bolada, ela está vivendo e reagindo ao agora, ao que está acontecendo
naquele instante, e naquele momento ela não sabe qual será o próximo
acontecimento.
Isso tudo não deve ficar apenas
na observação quanto à cena. Quantas vezes não estamos nos lugares que estamos?
Passamos por momentos bons e ruins, sem vivê-los, enquadrando-os na receita e
jogando dentro da fôrma, aí todo bolo tem o mesmo gosto, tudo que fazemos ou
ouvimos de alguém, passa a ser simplesmente a repetição da receita, é
enquadrado lá antes de sentir, e depois que está enquadrado, já não pode mais
ser vivido, apenas reproduzido. Então vamos nos fechando, parando de
compreender tantas coisas, cultivando tristezas e apegos velhos.
Se algo novo te faz mal, não pelo
que aconteceu, mas pela recordação que você tem de momentos parecidos, é porque
você não está se permitindo sentir o novo sem a influência do velho, você não
está ali, presente no agora, está simplesmente repetindo mágoas antigas. Não
que o novo não possa fazer mal, claro que pode, e isso não é um problema. Mas é
que se você vivê-lo, sem a fôrma, você vai conseguir perceber, encarar, viver
aquilo e permitir que vá, sem acrescentar na receita, fingindo pra você mesmo
que jogou fora, enquanto esconde em algum cantinho dentro de você. O novo vai
estar limpo do que já foi. Quando você junta ele no bolo, além de não conseguir
perceber direito, ele ganha mais peso e tudo que já estava lá, vai sendo
reafirmado, o bolo vai crescendo, espremendo o peito, dando nó na garganta, dor
nas costas e por aí vai. Ou você acha que as doenças vêm de onde? O seu corpo
está sempre no agora, mesmo que você não perceba. Ele sabe de tudo que acontece
com você e reage a isso. Ele te dá tantos sinais, e quando é ignorado, porque
você não está ali, vai achando formas de gritar mais alto. E os pequenos alertas
vão virando doenças bobinhas, medianas, graves.
Nem sempre eu consigo estar no
agora, mas é uma questão de determinação e treino. E com os espaços vazios que
ganhei hoje, decidi que não vou permitir mais coisas que não me fazem bem. Uma
boa forma de fazer isso é abandonar os hábitos que fazem mal, tão cultivados,
perceber cada um deles, de coisas simples, que aparentemente não tem importância,
aos mais enraizados e difíceis de deixar. Não deve haver exceções. Claro que
nem tudo vai ser percebido imediatamente, mas é uma busca constante,
determinada e com o objetivo de não permitir o costume só hoje, só uma vez. Não
podemos nos mimar assim, esse também é um hábito que faz mal.
Outro exemplo é quando estou
acompanhando os ensaios de alguma turma, ou temporada de espetáculo. Acompanho
como professora, preparadora de elenco ou diretora. É muito comum as pessoas
estranharem minhas reações. Quando estou assistindo, eu fico tão ali, naquele
segundo que está acontecendo, que apesar de já conhecer o espetáculo de trás
pra frente, eu me surpreendo, emociono, fico apreensiva, acho engraçado. É como
se cada vez que eu assisto fosse a primeira. Já me perguntaram também como isso
é possível, se eu já sei o que vai acontecer e já assisti a mesma coisa tantas
vezes. Bom, quando eu estou entregue ali ao momento, eu me permito sentir,
reagir e pensar de acordo com o que acaba de acontecer, e não à minha memória
daquilo.
Não estou dizendo que não devemos
ser experientes, ter conhecimento e usá-lo, mas se não vivemos o que está
acontecendo, a experiência não faz diferença. Na verdade, quando só repetimos a
receita e o bolo dentro da fôrma, nossa bagagem de conhecimento não é real,
passa a ser apenas mais massa de repetição.
Vou abrir mais vazios aqui. No
vazio há espaço pra tudo que minhas percepções e vontades pedirem. E quando
algo se juntar aqui dentro, não vai ser por falta de espaço e sim porque a
vontade pediu.
Natália Possas
sexta-feira, 19 de junho, 2015