terça-feira, 15 de setembro de 2015

Apenas mais uma fábula

Era uma vez, uma linda mulher chamada Julita. Ela era boa moça, sempre disposta a se sacrificar, respeitava fielmente um padrão de beleza, e um código de boa conduta. Só fazia coisas certas e respeitadas por todos, como deixar de aproveitar os sorrisos, deixar de perceber tudo que acontecia a sua volta, os momentos felizes dos quais ela participava, o carinho e amor de todos os presentes, e registrar um caminhão de fotos pra postar em tudo quanto é rede social e então, sentir o amor que todos tinham por ela. Esse amor é bem fácil de calcular: basta saber quantas curtidas e comentários suas fotos tiveram.

Para garantir sucesso, Julita deixava de usar algo confortável em todas as ocasiões que não estivesse sozinha. Apertava o orçamento, parcelava tudo a perder de vista, mas estava sempre impecável. Tudo do bom e do melhor com etiquetas bem caras. Não, espere, as etiquetas não são caras, e sim as roupas, sapatos e acessórios que vem grudados nelas. Julita às vezes me confunde.

Ela trabalhava muito, afinal manter tudo isso custava caro. E ainda tinha a academia e todos aqueles produtos que receitavam lá pra se manter sempre gostosa. Aqui vale uma explicação: gostosa é toda pessoa que possui massa muscular em excesso para a sua altura e tipo físico. Algumas regiões atestam uma gostosura mais eficiente como cu, a não desculpe, essa palavra é feia e nem define a área exata que eu quero citar. Boas moças só podem falar palavrão quando o timão está perdendo. Voltando ao assunto: bunda, abdômen, coxa, (mesmo que o restante da perna fique totalmente desproporcional e sobrecarregue os joelhos).

Quando chegava em casa à noite e tirava os lindos sapatos, sempre de salto, os pés estavam repletos de esparadrapos. Mas ela precisava daquele salto que não apenas espremia e machucava os pés, mas, que por estar extremamente desconfortável, fazia com que ela não distribuísse bem o próprio peso, trazendo assim inúmeros problemas para as pernas, joelho, coluna e por aí vai. Isso sem contar nos malefícios de um salto, mesmo que confortável (se é que isso é possível).

Ela precisava maltratar seu corpo, se causar dor e mutilar seus pés. Ela precisava passar o dia cansada, com mau humor e sofrendo. Ela precisava que no futuro outras dores chegassem. Precisava sacrificar outros setores da sua vida pela falta de grana. Uma vez ela viu um livro, que até achou interessante, mas ele custava R$20,00. Não podia gastar essa fortuna com aquele amontoado de papéis que ela nem teria tempo pra ler. Seria um desperdício, com esse valor, ela podia comprar duas cervejas e ainda sobrava troco.

Julita precisava seguir uma regra imutável de um pódio importantíssimo. Do contrário, ela jamais seria aceita, amada, querida, desejada, invejada e feliz. Se deixar flagrar sem todos os itens de um visual impecável, que deve inclusive estar de acordo com a idade, era um ato impensado. Indubitavelmente para Julita e todos que a cercavam, esse glamour é mais importante até que comer, porque até a alimentação deve estar a serviço da beleza. Ela seguia um monte de dietas inventadas por quem não tem a menor noção do que estava fazendo, como tomar só suco, ou shakes e coisas bem artificiais, malhar pegando mais peso do que o ideal para o seu corpo, e se entupir de bombas que fazem brotar massa muscular de uma forma bem antinatural. Vez ou outra, tipo, de quinze em quinze dias, ela ficava doente por conta disso, mas isso é coisa que acontece. Pessoas importantes sempre passam por contratempos. Mas valia a pena, ela se enquadrava no modelo de sucesso e beleza mantido em comum acordo por todos. E ninguém precisava saber dos momentos mais tristes, as fotos nas redes sociais esbanjavam alegria, festa, amigos!

Ela estava sempre cansada, ansiosa, com uma sensação de vazio tão grande, que ela nunca sabia de onde vem. Mas nem se importava, porque sabia que isso era apenas conseqüência dos seus dias atarefados. Achava até bom, porque quem não se sente assim, não tem uma rotina como a dela. São criaturas que nem devem ser citadas, menos importantes. Afinal, depois de se maltratar tanto, Julita não podia aceitar que outras pessoas não se comportassem da mesma forma que ela. Então passou a exigir de todos exatamente a mesma postura. Ora, alguém que não está disposto a se esforçar tanto, não pode ser um bom profissional, bom marido, boa esposa, na verdade não merece nem ser respeitado, é um ninguém mesmo, que não presta pra nada.

Nossa, quantos absurdos juntos! Só a minha criatividade mesmo, pra criar um faz de conta tão impossível de acontecer. Ainda bem que Julita não existe.

Natália Possas

quinta-feira, 16 de julho de 2015

pontinhos sobre o amor

Deu vontade de começar com uma pergunta. Mas ela deu lugar a frases curtas. Amor e seus pretextos. Amor e suas culpas, causas, direitos e deveres. Amores e seus desamores. A palavra não tem mais significado. Ela adquiriu direitos demais. Ganhou votos e requintes de crueldade. Perdeu sentimento. Perdeu sabor. Ganhou ferro e guilhotina, ganhou a força da raiva e da vingança. Ser cruel em nome dele é sinal de muito amor e até de vontade de ajudar. E ninguém está livre, dos analfabetos aos mais cultos. Não me importam os livros, as bagagens, nem o conhecimento.  Me importam as pessoas, sejam elas quem forem. Conhecimento e amor usados para ferir só servem para transformar o conhecimento em um amontoado de arrogância. 

Os disfarces estão aí pra quem precisa deles. Os pesos também. Amor de família, amor de amigo, amor romântico, amor a deuses, ídolos e heróis, amor por coisas e lugares. Há tantas variedades. E pra todas, as justificativas. Ninguém nunca tem culpa. Só o amor, só a vontade de ajudar, só o fazer bem. Pessoas fazem sofrer, enjaulam, matam, tudo em nome dele.

Eu posso criar uma outra palavra. Pra quê? As pessoas iam fazer tudo de novo. Não importam os significados, os nomes nem as regras. É tudo tão indiferente. Deve ser por isso que as vezes tenho que me lembrar que sou adulta. Tem horas que eu me vejo com olhos de criança percebendo as coisas. Pra mim amor é bom, então toda vez que ele encosta em alguém, ele pinta todos os cantinhos daquela pessoa de coisas boas. Imediatamente os sorrisos ficam grandões. Isso pega, e chega longe com o vento, que faz carinho em quem toca. Assim, todo mundo vai brincando de pique pega e o amor vai aumentando, ficando fortão.  Aí eu me lembro que sou adulta e que minha definição não é usada. Ela soa infantil e utópica demais. Mas eu sei que tem mais gente alimentando ela. Ainda são poucos. 

Isso de classificar pensamentos com olhares de criança e adulto, é só mais uma definição. Mais uma forma de desacreditar coisas boas. 

Natália Possas

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Hoje abri espaços vazios dentro de mim. O vazio é tão bom, ele permite que boas novas cheguem. Empilhamos muita quinquilharia dentro de nós. Guardamos sentimentos que não precisavam ser tão bem seguros. Aí, quando algo bom quer chegar, tem que abrir tanto espaço, que ao invés de fazer bem, só pesa o peito e vai congestionando tudo, até a garganta. Então tudo vai virando medo, angústia, bloqueio. É aí que o que deveria nos fazer bem, passa a nos causar sofrimento. Pronto, está criada a fôrma. Quando você tem fôrma e uma receita de bolo, pra quê vai se aventurar a preparar tudo sem elas? A partir daí tudo que se aproxima, vira mais um ingrediente da receita dentro da fôrma. Não adianta parar pra pensar, ouvir coisas seja lá de quem for, porque se tudo que você ouve e pensa, você transforma em ingrediente dentro da sua fôrma de sempre, tudo no fim, vai se transformar no mesmo bolo, na mesma coisa, no mesmo pensamento, na mesma atitude, na mesma resposta.

Como não fazer isso? Estando presente no agora, ouvindo, vendo e vivendo tudo no momento em que acontece, sem se transportar e buscar referência na receita que está dentro de você. Fazendo isso, você vai rasgar a receita, quebrar a fôrma e não vai precisar de outras pra colocar no lugar. Porque se você está presente no agora, você vive e responde àquilo que acabou de acontecer, sem o peso do que foi, sem a fôrma e a receita.

Sou atriz e professora de teatro e sempre falo para os meus alunos, que no momento da cena, eles não devem pensar como e o quê fazer. Seus personagens devem estar em cena e sentir, viver aquilo naquele momento. Dessa forma, por mais que o texto esteja decorado, e aquela cena ensaiada por meses a fio, se o personagem está ali, agindo e reagindo, ele vai sentir o que precisar sentir na cena, sem antecipações. É muito comum ver alunos e até atores já experientes entrarem em cena pensando em como vão fazer cada coisa, falando suas falas, fazendo suas marcações, já pensando na seguinte, na próxima emoção que vão ter que mostrar. Sim, mostrar, porque quando você não sente, tem que fabricar algo pra colocar no lugar. Por isso, pra muitos, o espetáculo deixa de ser um prazer e passa a ser um tormento e quem está nele, quer que acabe logo. Então, temos muitos atores, cujo único prazer na profissão, é a fama. Enquanto ela deveria ser apenas uma consequência, que nem sempre acontece. Mas passa a ser o objetivo principal. Então temos seres sedentos por estrelato ao invés de atores. E quando você permite que o seu personagem esteja ali, naquele instante que acontece, ele só vai precisar responder ao que está vivenciando.

Um exemplo bem simples disso é um espetáculo infantil que estou ensaiando com um aluno. Meu personagem Estela leva uma bolada na cabeça. E ela sempre se assusta de verdade, nunca está esperando a bolada. Uma vez me perguntaram: você sabe o texto decorado, conhece o roteiro e tudo que vai acontecer, como é possível se assustar toda vez com a mesma coisa? É porque a Estela está ali, naquele momento sem saber que vai levar uma bolada, ela está vivendo e reagindo ao agora, ao que está acontecendo naquele instante, e naquele momento ela não sabe qual será o próximo acontecimento.

Isso tudo não deve ficar apenas na observação quanto à cena. Quantas vezes não estamos nos lugares que estamos? Passamos por momentos bons e ruins, sem vivê-los, enquadrando-os na receita e jogando dentro da fôrma, aí todo bolo tem o mesmo gosto, tudo que fazemos ou ouvimos de alguém, passa a ser simplesmente a repetição da receita, é enquadrado lá antes de sentir, e depois que está enquadrado, já não pode mais ser vivido, apenas reproduzido. Então vamos nos fechando, parando de compreender tantas coisas, cultivando tristezas e apegos velhos. 

Se algo novo te faz mal, não pelo que aconteceu, mas pela recordação que você tem de momentos parecidos, é porque você não está se permitindo sentir o novo sem a influência do velho, você não está ali, presente no agora, está simplesmente repetindo mágoas antigas. Não que o novo não possa fazer mal, claro que pode, e isso não é um problema. Mas é que se você vivê-lo, sem a fôrma, você vai conseguir perceber, encarar, viver aquilo e permitir que vá, sem acrescentar na receita, fingindo pra você mesmo que jogou fora, enquanto esconde em algum cantinho dentro de você. O novo vai estar limpo do que já foi. Quando você junta ele no bolo, além de não conseguir perceber direito, ele ganha mais peso e tudo que já estava lá, vai sendo reafirmado, o bolo vai crescendo, espremendo o peito, dando nó na garganta, dor nas costas e por aí vai. Ou você acha que as doenças vêm de onde? O seu corpo está sempre no agora, mesmo que você não perceba. Ele sabe de tudo que acontece com você e reage a isso. Ele te dá tantos sinais, e quando é ignorado, porque você não está ali, vai achando formas de gritar mais alto. E os pequenos alertas vão virando doenças bobinhas, medianas, graves.

Nem sempre eu consigo estar no agora, mas é uma questão de determinação e treino. E com os espaços vazios que ganhei hoje, decidi que não vou permitir mais coisas que não me fazem bem. Uma boa forma de fazer isso é abandonar os hábitos que fazem mal, tão cultivados, perceber cada um deles, de coisas simples, que aparentemente não tem importância, aos mais enraizados e difíceis de deixar. Não deve haver exceções. Claro que nem tudo vai ser percebido imediatamente, mas é uma busca constante, determinada e com o objetivo de não permitir o costume só hoje, só uma vez. Não podemos nos mimar assim, esse também é um hábito que faz mal.

Outro exemplo é quando estou acompanhando os ensaios de alguma turma, ou temporada de espetáculo. Acompanho como professora, preparadora de elenco ou diretora. É muito comum as pessoas estranharem minhas reações. Quando estou assistindo, eu fico tão ali, naquele segundo que está acontecendo, que apesar de já conhecer o espetáculo de trás pra frente, eu me surpreendo, emociono, fico apreensiva, acho engraçado. É como se cada vez que eu assisto fosse a primeira. Já me perguntaram também como isso é possível, se eu já sei o que vai acontecer e já assisti a mesma coisa tantas vezes. Bom, quando eu estou entregue ali ao momento, eu me permito sentir, reagir e pensar de acordo com o que acaba de acontecer, e não à minha memória daquilo.

Não estou dizendo que não devemos ser experientes, ter conhecimento e usá-lo, mas se não vivemos o que está acontecendo, a experiência não faz diferença. Na verdade, quando só repetimos a receita e o bolo dentro da fôrma, nossa bagagem de conhecimento não é real, passa a ser apenas mais massa de repetição.

Vou abrir mais vazios aqui. No vazio há espaço pra tudo que minhas percepções e vontades pedirem. E quando algo se juntar aqui dentro, não vai ser por falta de espaço e sim porque a vontade pediu. 

Natália Possas
sexta-feira, 19 de junho, 2015
Eu, que antes tinha medo de chão, e agora sempre me aconchego nele; valso sentimentos, respiração, gritos, silêncios, sussurros, toque, suspiros, presença... e cada parte de mim, pede mais um pedacinho de abraço de terra, de chão, enquanto o vento leva o corpo e os movimentos deixam os sentidos transbordarem. É nessa hora que o peito nem lembra que é peito, que o saber e o ser perdem as definições, que os sorrisos e a alma se expandem aqui e longe, e o ar canta livre dentro e fora de mim.

Natália Possas

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Cada pedaço de papel pode ser um amontoado de palavras, tradução de sentimentos, verso, prosa, narrativa, frases soltas do que alguém pensou, pedaços de pensamentos, vazio, nada, uma parte de tudo e o que mais você quiser supor ou nomear. Não importa. Não importa o que foi, o que vai ser e muito menos os nomes e as classificações. Agora só importam as mãos que escrevem essas linhas e se entregam ao instante vazio de todo o resto. Elas se permitem no agora, a cada suspiro de arte, a cada som e milésimo de sentido, a cada vazio e preenchimento, a cada tudo comungado de outros olhares, ou nenhum. 

Mas essas mãos se rendem também a pensamentos inacabados, que se fundem e a fazem escapar de si, do instante, do silêncio, do som e do movimento. Elas são teimosas e ansiosas, e vez ou outra deixam versos inacabados. Se atiram em infinitos rabiscos sem corpo, cheios de voz. Quando isso acontece, elas deixam seus sons descansando e se perdem nos barulhos de gente que inundam o mundo de frases que deixaram de ser. Essas mãos sabem mais do que escrevem. Alguns pensamentos ainda estão por se firmar. 

Elas gostam mesmo é de brilhos nos olhos, abraço grandão que espelha corações, cheiro de dia alegre, arte, chão, sorrisos que saem por aí trazendo mais brilhos nos olhos, flor, sol, cafuné, dedicação, aprendizado, vento, gente, respiração, palco, barulho de água, desenho de nuvem, cheiro de terra, conversa de passarinho, chuva, conversa de corações, pés descalços, gargalhadas.

Tem hora que essas mãos se esquecem que gostam de tudo isso, aí as palavras vem aqui e logo dão um jeito de lembrá-las; e cada vez que isso acontece, um pedaço de papel ganha sentimentos bons e sai por aí pra tocar outras mãos. Se você está lendo isso, é porque acabou de ser tocado por elas. Faça bom proveito e deixe o vento levar mais longe, feito conversa de passarinho. 

Com brilho nos olhos, Natália Possas

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Pedra com desenho de água.
Deixa escorrer, lavar, levar,
deixa ir.

Deixa o vento fazer carinho
e a água fazer massagem.
Deixa os sons puros 
e simples tocarem sinfonias,
harmonias desarmônicas,
soltas no pensamento de quem sentiu.
Sem tons selados, rimados, nomeados.

Deixa escorrer, lavar, levar,
deixa ir

E se ficar o suspiro, que seja de alívio.
E se ganhar sussurro, que seja pro vento soprar,
no ouvido de quem quer lavar,
levar,
escorrer,
deixar ir,
...

Natália Possas

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Cadê? Cadê os desenhos guardados que eu quero escrever? Cadê? Cadê as fugas, frases breves tolas, inóspitas cuspidas pela saudade de mim? Cadê o peito leve e puro que eu tenho  apenas uma lembrança muito distante. Cadê tudo que eu encontro em mim e escondo de novo. Cadê as lágrimas que antes eram fáceis. Cadê os sons e os cheiros.  Cadê as portas abertas dentro de mim. Cadê os pensamentos que eu afogo antes de saber. Cadê eu gritando com muita voz. Cadê o olhar bonito. Cadê o olhar feio. Cadê as sincronias tortas e felizes. Cadê a fome, o grito, o tesão e a vontade. Cadê os gestos e as gargalhadas. Cadê o sorriso largo pela rua. Cadê a coragem. Cadê tudo que eu não soube saber. Cadê as minhas, eu e os meus. Cadê os sons, urros e silêncios bons. Cadê a degustação do que o medo não percebeu. Cadê a espontaneidade escancarada, a doçura que olhava as paisagens de gente. Cadê o senso, não senso, contrassenso. Cadê o piano e o tambor. Cadê a fome pra saciar. Cadê os pés firmes que gostam de voar. Cadê tudo que eu sei pros outros e não uso. Cadê o que não sabem de mim. Não sabem. Cadê a parede de chapisco e o cheiro de flor. Cadê a gangorra. Cadê o que tá aqui e eu não consigo pronunciar. Cadê o fim que começa sempre. Cadê a presença real. Cadê a dissolução dos equívocos  criados dentro e fora. Cadê o basta do cadê. Cadê o cheiro, o gosto e o abraço. Cadê a mão que não sabe desenhar, mas gosta de sentir o vento. Cadê o vento no rosto. Cadê a resposta do corpo.  Cadê o diálogo e a reação. Cadê a merda, a lenha e o tosco. Cadê o palavrão motivado. Cadê o traço cheio de morros. Cadê o ar solto. Cadê a vontade, que sempre tem vindo apressada demais pra ficar. Cadê as rimas desapegadas que pararam de rimar. Cadê o fim da fuga. Cadê o que eu quero e o que eu preciso. Cadê o que eu nem consigo mais saber. Cadê o fim dessa porra desse texto que não para de achar um monte de coisas, mas não grita de verdade. Eu acho formas de fugas de mim até dentro das palavras.  Cadê a competência sendo usada pro que precisa. Cadê o cansaço do que foi feito. Cadê o fim das listas. Cadê a vontade de tudo. Cadê tudo que dá vontade. Cadê o que eu fiz com tudo que foi entendido aos berros. Cadê tudo que eu preciso pra terminar essas linhas?


Natália Possas

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Palavras transbordando de quem precisa sentir vento, cheiro bom e olhares honestos. De quem ainda precisa que o silêncio e pés desacompanhados sejam respeitados. Estar só é tão diferente de solidão. Às vezes sinto o coração leve, e é nesse momento que as censuras são mais fortes. Em alguns momentos ainda permito que elas me toquem, em outros não.

Há tanta censura, que até quem diz não fazer parte, deixa suas pegadas nos olhares alheios. Percebemos no outro tanto do que precisamos perceber em nós. Os contextos mudam, mas as raízes estão lá compartilhadas. Temos uma lente pra cada situação. Alguns usam as mais grossas sem se dar conta. Outros usam as lentes que deixam a realidade quase como ela é, porque as lentes mais finas, por vezes permitem certezas que chegam antes da real percepção desapegada, e as lentes são trocadas com muita facilidade.

Pra se encher de você, é preciso esvaziar as porções de mundo desenhadas pelas consciências coletivas, que você também faz parte e ajuda a construir. Há mais ilusões do que nossa noção de realidade e tempo podem compreender. Quando conseguir isso, é hora de esvaziar o que acredita ser você.

Há tanta criação, ausências falsas e subterfúgios. Há tantas certezas criando cascas. Há tanto eu perdido de si. Há tanto tudo resumido a nada. Algumas cascas são quase intocáveis. Nós as fazemos assim. Essas são as que precisam ser quebradas, desapegadas. Existem também as superficiais, cheias de besteirinhas, facinhas de romper. Essas estão longe de ser o toque íntimo. Pessoas criam cascas superficiais pra terem a consciência tranquila de estarem quebrando algo.

Há tanto medo, realidade criada, aceita e vestida. Perceber isso nos mostra o quanto nos distanciamos de nós,  pra sermos mais uma consciência a construir e compartilhar essa realidade que todos acreditam e vivenciam. E é quando decidimos quebrar, nos desvestir de tudo, que o medo nos conta seus segredos e nos faz querer ficar. E ele não vem sozinho, ele sabe o que incomoda.

A ideia de quebra nos ajuda, nos faz revirar e perceber muito. Mas ela também é criada. A parte de nós que precisamos tocar está além de tudo isso e não requer grandes aventuras e esforço pra chegar. Temos que permitir que o medo vá, e tocar o que sempre esteve lá.


Natália Possas

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Quanta ilusão cabe nas direções que se formam em uníssono; quanta falta, fome e ausência de si; quantas novas construções que são as mesmas e só servem pra reafirmar o que deveria ser aniquilado. Somos tão mais fortes que esse sono, e esconder isso dá trabalho, causa fugas, sofrimento e doenças. Quanta energia a força contrária. Contra o outro? Contra o mundo? Nunca contra você, não é mesmo? Qual a diferença? 

Se pudessem ver a teia, se pudessem ao menos senti-la...

Natália Possas

segunda-feira, 25 de maio de 2015

O tempo desviou de si
e me contou seus dessincronismos sincronizados.
O instante se desconstruía diante dos olhos
que teimavam ainda em tentar entender.

Os tempos todos estavam
brincando de desconstrução.
Tão leve que nossas definições
não são capazes de sentir nem mesmo o toque.

E eu que ia e vinha, ainda sem controle,
fui desfiando o tempo que deixou de ser,
pra ser enfim. 

Natália Possas

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Porque ter um filho? Porque se transformar em mamãe e papai (no diminutivo fica mais fofo)? Ah, esse amor arrebatador capaz de tudo! Ele é tão grande que precisa extravasar.  Hoje vi uma mãe no ônibus segurando a filha. Ela estava séria, sem muito contentamento, e a criança estava nos braços. Essa cena me rendeu algumas reflexões.

O que motiva alguém a gerar um filho? Cuidar de alguém? Há tanta gente no mundo pra ser cuidada, inclusive a pessoa que quer cuidar, pra quê mais uma? Constituir uma família? Há tantas pessoas no mundo dispostas a isso, pra quê mais uma? Amor incondicional? Se é amor, pode ser doado, sentido por qualquer pessoa. “Não vou amar qualquer um, quero amar o meu filho, que saiu de mim”. Bem, eu chamo isso de troféu, posse, de necessidade de satisfazer seus desejos aprendidos, não de amor.

Alguém pra chamar de meu. Alguém pra embelezar, empetecar, e depositar tudo que há de bom. Alguém pra seguir as suas ordens e andar nos seus limites, mesmo quando você diz libertar. Alguém em quem enfiar todo amor que lhe farta o peito. Alguém pra mostrar pra alguém. Alguém pra ter em quem depositar todos os seus sonhos de um futuro brilhante. Alguém pra satisfazer sua vontade de ter alguém.

Não sou contra o fato, sou contra os motivos. É isso mesmo, sou contra. Normalmente digo isso de forma mais poética. Mas esse amor que tenho visto aí não merece cuidado nas palavras. Durante os minutos que observei aquela mãe no ônibus, um mundo de informações se desconstruiu e reconstruiu em minha frente. Eu, que desde criança tinha certeza que queria ter um filho, engravidar. 

Somos ensinados a crescer com essa certeza, pena que não ensinam o que fazer com ela. Na verdade ensinam. Os manuais estão por aí, em cada olhar que fere em nome do amor. Naquele momento, eu vi que essa certeza fabricada em nós, nada mais é do que a vontade de satisfazer os próprios desejos de forma bem desajustada e irresponsável. Se a intenção fosse apenas doar amor, não haveria tantas crianças e adultos precisando dessa doação.

Já passou da hora de desaprender a palavra e aprender o sentimento, que a cada momento é enclausurado em definições burras, guiadas por pura carência e egoísmo. E cada vez que isso acontece, ficamos mais longe de sentir o amor e mais autorizados por nós a fazer mal em nome dele. Que assim não seja, porque amor não é. 

Com amor,

Natália Possas

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Caminhos não levam.
Não trazem.
São pedacinhos de mundo
que alguém construiu,
deu nome,
e cara.

Sempre reconhecemos
quando estamos diante de um,
e usamos pra ligar corações,
enquanto achamos que caminhamos.

Natália Possas
Sorrisos delicados pediram cor
para o olhar firme,
que é só aconchego.
A cor não veio.
Já estava lá.

Natália Possas