Precisava não ficar em casa. Mas sem baladas nem festas. Os últimos acontecimentos não permitiam comemorações. Duas pessoas importantes, para amigas minhas, faleceram. E eu tinha um trabalho da faculdade perfeito para aquele momento: tirar fotos!
Fomos eu e Vanessa, também conhecida como espasmódica ou magrela. Mas isso eu explico depois, provavelmente em um texto que eu for tratar de pessoas espontâneas, muito espontâneas. Mas voltando ao assunto, "cenas urbanas" era o nosso tema. Uma câmera, duas cabeças com idéias surgindo e uma cidade inteira de possibilidades. Andamos, andamos mais e muito mais. Detalhes, olhares, situações engraçadas, gafes, momentos de paciência, fotos perdidas pela inexperiência, outras conseguidas pela cara-de-pau, pela sorte, ou por simplesmente estarmos no momento e lugar certos. Inúmeras percepções tentando fugir do obvio e buscando o diferente na simplicidade. Mas o que mais chamou nossa atenção foi o que sempre esteve lá, à espera de um olhar. Cenários de lugares e de gente, histórias esperando pra serem ouvidas.
Uma cena perfeita para o que queríamos, porém lamentável: pessoas morando às margens do Rio Paraíbuna. Havia dois rapazes dormindo, outro arrumando a "casa”, uma mulher, de pensamento longe, com olhar em direção ao Rio, e outro homem observando todos. “Foto pra quê”, disse a senhora. O homem que observava tentou intermediar o diálogo. Depois de alguma conversa, cinco reais era o preço. Claro que, se comparado ao cachê de modelos fotográficos, ou a qualquer outra coisa, um valor ínfimo, até miserável. O problema é o que esta situação representa. Era a forma de ganharem algo com a miséria particular, de usarem suas necessidades em proveito próprio, de explorarem a si mesmos. Quando alguém começa a se explorar, é porque perdeu todas as outras possibilidades. O que poderíamos fazer nesta situação? Sempre acreditei que o diálogo fosse a base de tudo. Nesse caso não foi. Mas, nos permitiu conhecer a história de Jefferson, o homem que tentou nos ajudar com as fotos. Ele veio do Rio de Janeiro, e hoje, mora às margens de outro Rio. Foi assaltado, quando chegou aqui com a intenção de trabalhar, e sem dinheiro para voltar, foi para as ruas. “Aqui, tem os que mandam mais. Então, fico perto daquele cara, porque ele me protege. Estou esperando receber o meu PIS, pra poder voltar pra casa”. Ele conta que começou a escrever: “o livro é sobre o que eu tenho vivido, e quando eu puder, quero voltar aqui, e fotografar por onde eu passei”.
Em uma outra foto, alguém se aproximou, por necessidade de dividir algo. Era um travesti, que também disse se chamar Vanessa. Sua vida e conflitos foram despejados sem nenhuma pergunta. Seu olhar era triste. “Fui expulsa de casa, minhas amigas estão mortas, algumas foram assassinadas. Elas faziam a vida".
Quando você está com uma câmera, as pessoas pensam que você tem o poder de fazer algo por elas e derramam de uma vez, memórias e caminhos através de palavras e olhares. Nós, só podíamos ouvir, e acrescentar a sorte delas em nosso baú, que sempre está aberto e em busca de conhecimento. Todos temos o que expressar. Nossas atitudes são conseqüências de um contexto, mesmo que ele esteja em algum lugar muito longe em nosso passado. Ouvir e observar afinam a sensibilidade.
Voltamos para casa exaltas. A Vanessa foi brindar com amigos em um aniversário, e eu vim compartilhar percepções.
Natália Possas